MEDALHA
CONTEMPORÂNEA
- FORMAS E TEORIA ARTÍSTICA -
José
Teixeira
As artes plásticas são inquestionavelmente, produtos da
sensibilidade e do pensamento materializados num qualquer suporte bi ou
tridimensional.
A medalha, comparativamente à pintura ou à escultura que
no Renascimento se libertaram do estigma da manualidade repensando o estatuto
do artista em paridade com a do intelectual , continua hoje a padecer
do preconceito de ser considerada uma arte menor, mais produto de artesania
do que portadora de pensamento estético socialmente empenhado e
interveniente.
Evidentemente que não é o seu tamanho pois, uma coisa é
quantidade e outra bem diversa é a qualidade.
O que está em causa é a relação da produção
com o público, isto é, o problema do gosto e da sua fundamentação
cultural à luz da História da Arte e das ideias, da estética
etc.
Reflectindo sobre o assunto o que, desde logo, sobressai é a pobreza
de reflexão teórica sobre a medalha enquanto género
artístico diferenciado das demais artes plásticas. A medalha
continua a ser a gata borralheira, parente pobre, entre suas distintas
irmãs a pintura e a escultura.
Em Portugal a medalhística tem tentado ultrapassar esse legado,
quanto mais não seja pelo facto de fazer parte das disciplinas
(opcionais) do Curso de Escultura da Faculdade de Belas Artes da Universidade
de Lisboa . Na década de 90, particularmente, na sequência
da acção do Prof. Escultor Helder Batista a medalha rejuvenesceu,
interessando a novas gerações de escultores e constituindo
um campo de investigação autónomo, com perspectivas
de inovação tecnológica e artística à
procura do seu espaço de intervenção na contemporaneidade.
O florescimento de exposições colectivas e individuais são
agora, a prova dessa vitalidade e do espírito de curiosidade que
a desperta da infecunda redundância formal, para uma modernidade
há muito adiada.
A conquista de outros territórios
semânticos e tecnológicos suscitados por uma poética
de autor, acompanhados da correspondente reflexão teórica
que legitima e nutre o próprio processo criativo, vai contribuindo
para a dinâmica de renovação do género medalhística.
Foi
neste contexto que surgiram os textos que a seguir apresentamos e cujo
carácter informativo e documental se realça, propondo-os
à apreciação de um público mais vasto, uma
vez que ambos foram produzidos para os catálogos de duas exposições
realizadas no presente ano.
Convencionalidade
e singularidades do plano
Pensemos
na medalha, sem ser num exemplar em particular, enquanto exercício
normativo de pura abstracção tentando, sobretudo, avaliar
o conjunto de requisitos que concorrem para a elucidação
do sentido comum do termo.
Em jeito de sumária contextualização poderíamos
concluir que se até ao inicio do século XX o regime de consensualidade
normativa permitia uma inquestionável definição do
conceito de medalha, actualmente o mesmo não acontece visto que
as hermenêuticas individuais tendem a alargar, a romper ou mesmo
a corromper o espartilho do legado tradicional desse específico
género artístico. Isto resulta, fundamentalmente, das poéticas
de projecto individual que revolucionam a acção contemporânea,
por oposição à mingua de encomendas socialmente prestáveis
e que, historicamente, garantiram o exercício plástico da
medalha.
No limite deste processo assisti-se, hoje, a uma insolvência linguística
que raramente sai da repetição de modelos estereotipados
ou supera o cliché de novidade com a presunção de
modernidade.
Ao observar-se o arquipélago da medalha, podemos inferir que as
propostas formais oscilam basicamente entre dois arquétipos: o
da “bolacha Maria ”, tradicionalmente representada sob as
duas faces paralelas de um tronco de cilindro (verso e anverso ) contendo,
normalmente, um pictograma e uma mensagem verbal e o do “bibelot”,
paradigma que decorre da erupção dos planos num jogo assimétrico
e barroquista, num clima de maior efusividade tridimensional – a
medalha objecto.
Ainda assim, e subtraindo-nos à interminável polémica
das singularidades interpretativas dos artistas, podemos tentar referenciar
o que de invariável existe nestas concepções, visando
estabelecer um corpo normativo que nos permita de forma mais objectiva
classificar o conceito de medalha enquanto género específico,
perfeitamente autónomo e diferenciado de outras expressões
plásticas afins.
Neste contexto, conviria começarmos por inventariar alguns dos
factores da invariabilidade do género:
Quanto à configuração desse território comunicacional
poderíamos circunscrevê-lo em duas principais tipologias,
uma que decorre de uma prévia estrutura geométrica elementar,
vulgarmente de face circular, quadrada, rectangular (figuras geométricas
simples) e outra de perímetro formal sinuoso, não regrável
ou irregular. Em qualquer dos casos estamos perante um hipotético
volume de espaço de dimensões reduzidas que, no primeiro
modelo, se circunscreve num perfeito sólido geométrico de
bases paralelas - verso/anverso - ligadas entre si por uma espessura,
enquanto que no segundo se altera a anterior previsibilidade planimétrica
pelo exacerbamento das possibilidades tridimensionais da forma no espaço;
um exercício em “ronde bosse” que frequentemente se
presta a alguma equivocidade com a escultura de pequena escala.
No sentido lato do termo “medalha” pauta-se, então,
por uma dialéctica das singularidades do plano, implícita
ou explicitamente configurado num elemento icónico de carácter
gráfico ou volumétrico, acompanhado de uma mensagem verbal
sintética. O protótipo deve ser concebido para ser multiplicado,
isto é, tecnologicamente reprodutível.
Nesta leitura, o que resulta de interessante numa medalha é a interacção
do seu convencional espaço topológico com a singular toponímia
imagética do sujeito que, incessantemente, a reinventa no limiar
dos seus requisitos limites, sem comprometer a sua identidade, prestando-se
ao aprofundamento dialéctico das inúmeras potencialidades
do plano.
Digamos que a perspectiva é algo bauhausiana, porém, acreditamos
que é necessária alguma reflexão teórica em
torno dos limites e das possibilidades da sua linguagem sem a qual o género
continuará refém do anátema da manualidade.
É neste enclave que a medalha parece superar o estatuto de mero
produto artesanal para se consubstanciar como objecto de pensamento plástico
artisticamente legitimável.
Medalhas- corpo e mensagem
Nas
artes plásticas a medalha constitui um género convencionalmente
identificado pelas seguintes características :
-
É
um objecto intimista antropometricamente derivado da escala da mão
(normalmente não excede os dez centímetros)
-
É reprodutível por algum processo tecnológico
/ industrial (fundição, cunhagem ou construção)
-
Apresenta duas faces - verso e anverso - estruturalmente simétricas
e paralelas, derivadas de sólidos geométricos regulares
- o cilindro e ou o prisma recto quadrangular ou rectangular (tipologia
que designamos pelo arquétipo da “ bolacha maria”
por oposição ao estereótipo do “ bibelot
“, formalmente mais objectual e barroquista )
-
A composição das superfícies integra elementos
icónicos e textuais – A imagem e a legenda.
Tradicionalmente
condicionada às encomendas, por motivo de qualquer celebração
ocasional, a medalha passou, na última década, a constituir
um objecto de investigação pessoal.
O que começou por ser um exercício expressivo, marcado pelo
virtuosismo da manualidade (medalhas fundidas), converteu-se, hoje, nos
limites da sua identidade e inteligibilidade, num sinal de pensamento
e de intervenção cultural. A convencionalidade normativa
do género transformara-se no pretexto do discurso. A crescente
autonomia permitiu não só questionar os suportes em que
se inscreve mas, sobretudo, selecionar as mensagens que subscreve.
Num quotidiano acentuadamente marcado pela banalização discursiva,
na inversa medida da massiça reprodutibilidade das mensagens, a
medalha redescobre a essência dos objectos enquanto extensões
significativas da corporalidade do sujeito, constituindo, assim, o registo
de um processo de interacção na realidade.
O desafio destes objectos está no facto de permanecerem exercícios
legíveis no quadro referencial da ortodoxia plástica, sem
abdicarem de exprimir o inconformismo de indagar o mundo que socialmente
coabitam e partilham.
Autor
José Teixeira , nasceu a 3 de Novembro de 1960, licenciou-se
em Escultura e realizou o Mestrado em Teorias da Arte na Faculdade de
Belas Artes da Universidade de Lisboa onde, actualmente, lecciona a cadeira
de Artes Plásticas. Como escultor expõe regularmente desde
1980, dedicando-se à medalhística a partir de 1995.
ver medalha de José Teixeira
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