VISITA INESPERADA
No passado dia 12 do mês de Março de
2005, fui surpreendido pela visita de um homem macilento, sombrio
que se identificou como sendo Manuel Maria Barbosa e que desejava
que lhe fizesse uma medalha comemorativa da sua morte. Vinha enrolado
numa capa de cor escura, que o tapava quase totalmente Após
uma troca de olhares de análise mútua, convidei-o a
entrar. Sentou-se de imediato, pedindo-me desculpa pelo atrevimento.
Notei que estava cansado, mesmo que aparentasse alguma juventude;
a respiração fazia-se
com certa dificuldade; a fineza dos seus gestos denunciava uma certa
ascendência talvez "enobrecida pelas armas".
Após
uma longa pausa, perguntei-lhe como me tinha encontrado. Respondeu-me
de forma firme e sem dúvidas:
- Vi algumas das suas medalhas
que me deixaram encantado, pela subtileza da modelação e gosto particularmente, da relação
que faz, entre as duas faces; assim como aprecio as patines que utiliza...
sabe, sempre me interessaram, estes pequenos objectos de comunicação;
considero-os, pequenos poemas metálicos, que utilizam uma
métrica própria e que expressam de forma contida, um
acontecimento ou anunciam uma comemoração. A medalha
portuguesa, que se fazia no meu tempo, era muito influenciada, pelos,
estrangeiros que trabalhavam para cá.
Aproveitei a pausa, que fez para respirar e
tossir, e disse-lhe: talvez fosse interessante apostar nos jovens
artistas, os quais, o poderiam servir de modo mais inovador...
não me deixou acabar,
retorquindo imediatamente:
- Quando é que deixa de tapar aquilo,
que os nossos olhos apreciam e tocam, sem ser necessário usar
as mãos.
Quando o silêncio da surpresa se me apagou,
deixei escapar - aceito a tarefa. De imediato o desconhecido
visitante saiu de rompante, murmurando desculpas e dizendo que
voltava. Fiquei sem saber como o contactar.
O tal personagem voltou e queria ver o que já teria
feito. A energia momentânea que usou foi grande - tirou a capa
que o envolvia, deixando ver através da indumentária,
que era uma personagem com história, mesmo que se vestisse
pobremente - o calção
estava muito coçado e os sapatos cambados, tinham fivela barata.
Sobre o meu trabalho, acalmei o visitante dizendo-lhe
que se não
se importasse. Gostaria de saber quem ele era efectivamente, a fim
de que pudesse a ter dados reais, para organizar o meu pensamento.
Depois de algumas hesitações, identificou-se
como sendo um poeta livre de nome Manuel Maria Barbosa Du Bocage.
Manifestei as minhas desculpas de não o ter imediatamente
reconhecido os seus olhos azuis brilharam demoradamente, e perguntou:
- Conhece-me?!
Ao que respondi, dizendo
que sabia que era de Setúbal,
e que era um poeta de grande espontaneidade, incomodativo para os
políticos e certas classes sociais, e criador de uma ousada
poesia erótica.
- Nunca pretendi ofender
ninguém, disse o poeta, e
como era indiferente ao que os outros pensassem desses meus poemas
apressados, criei uma fama de intervencionista, irreverente,
o que nada tem a ver com a minha verdadeira poesia. Sou um poeta
romântico ou
melhor pré-romântico, tive como professores dois grandes
homens da Cultura Portuguesa, um chamado José Anastácio
da Cunha, que foi vítima do seu génio brusco e das
ideias da época; um outro jesuíta insigne José Monteiro
da Rocha, que foi Reitor da Universidade de Coimbra e preceptor de
príncipes.
- Estes mestres inculcaram-me
a admiração por tudo
o que era belo e grande, mais, ensinaram-me a ser eu próprio,
de modo a enfrentar as realidades, mesmo que estas não fossem
as mais benéficas para mim...
Teve a sorte de ter tão bons mestres,
comentei.
Olhou para mim de soslaio e começou a
falar do ambiente que frequentava e onde era costume tomar uns
copos. O ambiente era asfixiante na cidade, considerou:
- Os medos da propagação das doutrinas filosóficas,
e o que estas arrastavam, traziam empenhados, o tribunal da Inquisição
e o intendente Pina Manique, através dos seus polícias,
aos quais nós poetas e pensadores, apelidávamos de
Moscas".
Cansado de falar deixou-se repousar um pouco.
Voltou a falar de si de modo sonâmbulo, lembrando os anos
que esteve na marinha e o curso que ali tirou:
- Embarquei para o Oriente
onde passei um mau bocado, mas tive o privilégio de conhecer os lugares por onde Camões andou;
voltei a Lisboa passados quatro anos com grande entusiasmo, em que
as saudades eram muitas e porque desejava cantar Luís de Camões,
mas deparei com um ambiente mais asfixiante do que aquele que existia
na altura em que embarquei para o Oriente - fosse qual fosse o lugar
onde procurávamos falar de modo diferente, através
da poesia ou outra expressão artística, éramos
logo confrontados com os Moscas, os tais bufos do Intendente.
- Muitos foram presos
e sujeitos a interrogatórios que os
levaram ao desespero; outros porque tinham posses ou outro tipo de
benefícios, partiram para fora do país, Entretanto
os lugares de encontro multiplicavam-se em Lisboa e tomaram-se anfiteatros
de cultura e contestação.
Já muito fatigado perguntou-me quando começaria a
trabalhar. Respondi que desde o início que o fazia, prometendo-lhe
que na próxima visita lhe dava conta do meu projecto plástico.
Partiu, mas antes deixou escapar o seguinte:
- Gosto do seu pequeno
atelier onde me sinto muito bem, e gosto particularmente da forma
como está a
iniciar o seu projecto.
Já perto da porta desabafou: - ainda
bem que o encontrei.
Já há vários dias que não recebo a visita
do poeta, contudo o meu projecto da medalha prossegue. Esbocei directamente
no gesso as duas faces e neste momento estudo o claro escuro. A luz
tem sido minha colaboradora, da qual tiro o máximo partido,
trabalhando com ela, vinda da direita ou da esquerda.
O poeta continua sem dar sinais, mas o meu trabalho
continua; hoje mesmo vou deitar gesso nos estudos iniciais e trabalhar
os negativos. Estes, muitas das vezes, dão-me outra perspectiva, a qual
me orienta para algumas alterações. Passada esta fase
volto a pôr gesso nos negativos e obtenho positivos diferentes
dos primeiros. Agora continuo com as duas faces lado a lado, acentuando
aqui e ali certas partes, anulando tudo aquilo que porventura esteja
a mais, sempre de acordo com o pensamento com que iniciei o projecto.
As legendas estão sempre presentes mesmo que só desenhadas,
porque elas fazem parte desde o início do processo compositivo.
Por falar em legendas, neste projecto estas resumem-se ao nome do
poeta e a datas; sobre o bicentenário da morte do Poeta. Por
minha iniciativa acrescentei: - Nem mesmo morto os Moscas o largam.
Algum tempo depois voltou o poeta, que ficou a olhar longamente
para os gessos das duas faces da medalha.
Após a sua acomodação,
o que o fez com toda a pachorra, proferiu:
- Sinto-me
agradavelmente retratado e gosto em particular das grandes sínteses
que julgo serem já vocábulos do seu
próprio trabalho. Agrada-me a horizontalidade do meu corpo,
mas não contava com a companhia dos Moscas. Compreendo a sua
intenção mas não sei o que poderá acontecer
quando a medalha for posta a circular. Não esperava grandes
companhias, continuou mas os Moscas - nunca tal me ocorreu.
Concordei com o poeta, mas lembrei, - ao criar
esta situação,
era minha intenção lembrar que hoje em alguns sectores
da vida cultural, política e administrativa, ainda persistem
certas práticas que se identificam com o século dezoito.
Os complexos amalgamados durante anos que agora
se libertaram e que deram origem a algumas certezas, mais não são que
bocejos de liberdade mascarada. Os Moscas de hoje, são mais
disfarçados e dissimulados, não usam fardamento. São
por exemplo, os críticos encartados, muitos deles ignorando
o que se faz à sua volta; são os gestores de empresas
fechados a qualquer inovação, e quando pressionados
se abrem, admitem tudo porque nada sabem sobre o assunto. São
os políticos que na sua maioria pouca importância dão à cultura
e quando dão, é para servirem-se dela, esquecendo-se
ou ignorando que esta é que é o sal de qualquer povo.
Parece-me que esta forma de exercer influência lhe diz alguma
coisa, ou não?
- Sim, - é verdade, eu gosto do
ouvir e acredito no que quer dizer, mas tenho receio de que essa
sua liberdade, lhe traga dissabores.
- Não sei se voltarei a visitá-lo, manifestou o poeta. O que me trouxe aqui de início está praticamente resolvido,
e como sei que não deixará por mãos alheias
todas as outras operações para a execução
da medalha.
Gostaria de continuar a tê-lo como visita afim de perceber
o meu tempo através do seu... interrompi. -
Acredite que também
gostaria de prolongar este convívio; mas sabe, as minhas deslocações
aqui tem-me perturbado muito por causa dos transportes e dos olhares
indiscretos... e sinto-me muito doente...
Lamento muito que se sinta cansado e quanto ao acabamento final
da medalha pode ficar certo que tratarei dela como sempre o fiz com
muitas outras.
- Obrigado. Um familiar
meu contactá-lo-á para
tratar de todos os pormenores sobre o seu trabalho. Agora vou descansar
e aguardar pela reacção das pessoas.
A tiragem da medalha foi de quinhentas peças numeradas, com
um diâmetro de cinquenta milímetros em prata. De início
alguma polémica se instalou em redor da medalha; do bicentenário
da morte do poeta pouco mais se acrescentou.
Esta situação é pouco abonatória de
um país rico em poetas e artistas, mas ao que parece pobre
nos modos de os comemorar.
Helder Batista
2005
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